quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Santa Joana d’Arc, Guerreira do Altíssimo (2)

Santa Joane d'Arc auxilia a cidade de Compiegne, St-Jacques de Compiègne, Herois medievaisDisse ao rei que vinha da parte de “seu Senhor”, o Rei do Céu, a quem pertencia o reino da França, e não a ele.

Mas "seu Senhor” queria muito confiar a guarda desse reino ao rei, ela o levaria a Reims para ser coroado.

Para provar o caráter divino de sua missão, em particular revelou a Carlos VII um segredo que somente ele e Deus poderiam saber.

A retumbante vitória que Joana alcançou, fazendo levantar o cerco de Orleans, conseguiu mudar o quadro de então. O caminho para a sagração em Reims estava praticamente aberto.

Após essa vitória, a donzela foi ter com Carlos VII para apressá-lo a se fazer sagrar em Reims, porque — explicava ela — “eu durarei um ano, e não mais”, como lhe haviam dito as "Vozes". Era preciso, pois, apressar-se.

Após a sagração do rei Carlos VII na Catedral de Reims, Joana afirmou ao Arcebispo daquela cidade:

-- “Praza a Deus, meu Criador, que eu possa agora partir, abandonando as armas, e ir servir meu pai e minha mãe guardando suas ovelhas, com minha irmã e irmãos, que terão grande alegria em me rever!”.

No auge de sua glória, ela não desejava senão retirar-se para a sombra.

No dizer de Dunois, o Bastardo de Orléans, isso fez com que aqueles que a viram e ouviram nesse momento compreendessem que ela vinha da parte de Deus.

Mas Joana cria que sua missão consistia em reconquistar pelas armas todo o território francês sob domínio inglês.

Santa Joana d'Arc, santuário de Bois Chenu, Lorena, Herois medievais
Entretanto o rei, não lhe deu o apoio necessário. Os soldados insistiram com ela para que continuasse a comandar as tropas. Aquiesceu, mas limitou-se a comandar seguindo os conselhos dos generais, pois suas "Vozes" não mais lhe indicavam o que fazer. Elas se limitavam a lhe dizer que seria feita prisioneira e vendida aos ingleses, mas que confiasse, pois Deus não a abandonaria.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Santa Joana d’Arc, Guerreira do Altíssimo (1)

Santa Joane d'Arc recebe as vozes, St-Jacques de Compiègne, Herois medievais

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








O Reino Cristianíssimo da França em 1429 estava prestes a desaparecer. Justamente castigada por Deus com quase cem anos de guerras contra os ingleses, como consequência do pecado de revolta contra o Papado, cometido no início do século XIV por seu Rei Filipe IV, o Belo.

Seu território estava reduzido a menos da metade e os ingleses cercavam a cidade de Orleans, última barreira que lhes impedia a conquista do resto do país.

O herdeiro do trono, o delfim Carlos, duvidava da legitimidade de seus direitos, e seus capitães e soldados estavam desmoralizados.

"O Analista de Saint Denis, começando a narração do ano de 1419, escrevia: 'Era de se temer, segundo a opinião das pessoas sábias, que a França, essa mãe tão doce, sucumbisse sob o peso de angústias intoleráveis, se o Todo Poderoso não se dignasse atender do alto dos Céus as suas queixas.

Assim apelou-se para as armas espirituais: cada semana faziam-se procissões gerais, cantavam-se piedosas ladainhas e celebravam-se Missas solenes.

Em sua terrível decadência, sentindo-se incapaz de salvar-se a si mesmo, o Delfim guardava sua fé no Deus de Clóvis, de Carlos Magno e de São Luís, a sua confiança na Santíssima Virgem".

Santa Joana d'Arc, Notre Dame, Paris, Herois medievais
Em sua infinita misericórdia, quis Deus atender essas preces, e escolheu para salvar a França não um grande chefe de guerra ou um hábil político, mas uma virgem, a fim de mostrar que era unicamente d'Ele e de seu poder que vinha a vitória.

Joana nasceu na festa da Epifania de 1412, na aldeia de Domrémy (Lorena francesa).

Seus pais, Jacques d’Arc e Isabelle Romée, eram “excelentes trabalhadores e fervorosos católicos, que serviam a Deus com um coração simples e educavam seus filhos no trabalho e no temor de Deus”, conforme testemunho de contemporâneos.

Desde seus primeiros anos sua conduta foi pura e irrepreensível. Logo que a idade o permitiu, entregou-se aos trabalhos da casa. Mais que uma criança precoce, Joana era uma menina virtuosa.

Tinha um coração bom e compassivo, uma prudência madura; era modesta, humilde mas determinada, e apontada como exemplo em toda a aldeia.

A inocência de vida e a simplicidade de coração de Joana atraíram-lhe os olhares do Céu. E foi assim que lhe apareceu por vez primeira o Arcanjo São Miguel, rodeado de Anjos.

Santa Joana d'Arc, entrada em Orleans, Herois MedievaisO Príncipe da milícia celeste narrou-lhe o triste estado (“grande penúria”) em que estava a França, dizendo-lhe que ela deveria apressar-se em socorrê-la; e que Santa Margarida e Santa Catarina viriam também, da parte de Deus, para incentivá-la a isso. E elas vieram.

Falaram também da “grande penúria” e da necessidade de ela cumprir essa missão.

Joana mostrou-se digna da missão que lhe foi confiada. Seguindo as diretrizes do “Senhor São Miguel, da Senhora Santa Catarina e da Senhora Santa Margarida”, venceu todas as objeções e foi avante. E, de fato, chegou à corte do rei, em Chinon.

Como se tivesse passado toda a vida nesse ambiente, fez com graça as três reverências de praxe diante do rei.

O futuro Carlos VII, para prová-la, estava disfarçado entre os 300 nobres presentes, e um deles tomara seu lugar.

Isso não atrapalhou a donzela, que foi direto a ele. Segundo um contemporâneo, “seu discurso foi abundante, poderoso e inspirado, como o de uma profetiza”.



Santa Joana d'Arco, estátua em Paris





Autor: Plinio Maria Solimeo



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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A morte de Gonçalo Mendes da Maia, «O Lidador» ‒ V

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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diversos blogs







CAPÍTULO VII

Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mês de julho de 1170 se deram na veiga da fronteira de Beja, notá-los-á de fábulas sonhadas; porque nós, homens corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de vida afeminada, medimos por nossos ânimos e forças, a força e o ânimo dos bons cavaleiros portugueses do século XII; e todavia, esses golpes ainda soam, através das eras, nas tradições e crônicas, tanto cristãs como agarenas.

Depois de deixar assinadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador vibrara pela última vez a espada e abrira o elmo e o crânio de um cavaleiro árabe.

O violento abalo que experimentou lhe fez rebentar em torrentes o sangue da ferida que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso Hermingues de Baião, que com eles se ajuntara.

Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes da Maia de oitenta anos de combates!

Já a este tempo cristãos e mouros se haviam descido dos cavalos e pelejavam a pé.

Traziam-se assim à vontade, e recrescia a crueza da batalha.

Entre os cavaleiros de Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu capitão, e não houve ali olhos que ficassem enxutos.

O despeito do próprio Mem Moniz deu lugar à dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluços:

— Gonçalo Mendes, és morto! Nós todos quantos aqui somos, não tardará que te sigamos; mas ao imenso, nem tu, nem nós ficaremos sem vingança!

— Vingança! — bradou o Espadeiro com voz rouca, e rangendo os dentes. Deu alguns passos e viu-se o seu montante reluzir, como uma centelha em céu proceloso.

Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço Viegas o conhecera pelo timbre real do morrião.

CAPÍTULO VIII 

Se já vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto muitas vezes um vulto negro que em linha diagonal corta os ares, sussurrando e gemendo.

Rápido, como um pensamento criminoso em alma honesta, ele chegou das nuvens à terra, antes que vos lembrásseis do seu nome.

Se encontrou na passagem ângulo de torre secular, o mármore converte-se em pó; se atravessou, pelas ramas de árvore basta e frondosa, a folha mais virente e frágil, o raminho mais tenro é dividido, como se, com cutelo sutilíssimo, mão de homem lhe houvera cerceado atentamente uma parte; e, todavia, não é um ferro açacalado: é um globo de ferro; é a bomba, que passa, como a maldição de Deus.

Depois, debaixo dela, o chão achata-se e a terra espadana aos ares; e, como agitada, despedaçada por cem mil demônios, aquela máquina do inferno estoura, e de roda dela há um zumbir sinistro: são mil fragmentos; são mil mortes que se derramam ao longe.

Então faz-se um grande silêncio vêem-se corpos destroncados, poças de sangue, arcabuzes quebrados, e ouvem-se o gemer dos feridos e o estertor dos moribundos.

Tal desceu o montante do Espadeiro, roto dos milhares de golpes que o cavaleiro tinha descarregado.

O elmo de Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em pedaços pelos ares, e o ferro cristão esmigalhou o crânio do infiel, abriu-o até os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.

— Lidador! Lidador! — disse Lourenço Viegas, com voz comprimida.

As lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue do agareno, de que ficou coberto. Não pôde dizer mais nada.

Tão espantoso golpe aterrou os mouros. Os portugueses seriam já apenas sessenta, entre cavaleiros e homens d'armas: mas pelejavam como desesperados e resolvidos a morrer.

Mais de mil inimigos juncavam o campo, de envolta com os cristãos.

A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida.

Os portugueses, senhores do campo, celebravam com prantos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as armas falsadas e rotas.

O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja.

Após aquele tristíssimo préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templário, que fôra na cavalgada com a espada cheia de sangue metida na bainha, salmodiava em voz baixa aquelas palavras do livro da Sabedoria:

“Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos tormentum mortis”.


FIM


(Fonte: Universidade de Amazonia . NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal, CEP: 66060-902, Belém – Pará, www.nead.unama.br, e-mail: nead@unama.br)



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quarta-feira, 28 de julho de 2010

A morte de Gonçalo Mendes da Maia, «O Lidador» ‒ IV

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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CAPÍTULO IV

Entretanto os mouros iam de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes, Gomes Mendes Gedeão e os outros cavaleiros daquela lustrosa companhia tinham praticado maravilhosas façanhas.

Mas, entre todos, tornava-se notável o Espadeiro. Com um pesado montante nas mãos, coberto de pó, suor e sangue, pelejava a pé; que o seu agigantado ginete caíra morto de muitos tiros de frechas lançadas.

De roda dele não se viam senão cadáveres e membros destroncados, por cima dos quais trepavam, para logo recuarem ou baquearem no chão, os mais ousados cavaleiros árabes. Como um promontório de escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava imóvel e sobranceiro no meio do embate daquelas vagas de pelejadores que vinham desfazer-se contra o terrível montante do filho de Egas Moniz.

Quando o fronteiro caiu, o grosso dos mouros fugia já para além do pinhal; mas os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu moribundo. O Lidador esse tinha sido posto em cima de umas andas, feitas de troncos e franças de árvores, e quatro escudeiros, que restavam vivos dos dez que consigo trouxera, o haviam transportado para a saga da cavalgada.

O tinir dos golpes era já muito frouxo e sumiam-se no som dos gemidos, pragas e lamentos que soltavam os feridos derramados pela veiga ensangüentada. Se os mouros, porém, levavam, fugindo, vergonha e dano, a vitória não saíra barata aos portugueses.

Viam perigosamente ferido o seu velho capitão, e tinham perdido alguns cavaleiros de conta e a maior parte dos homens de armas, escudeiros e pajens.

Foi neste ponto que, ao longe, se viu erguer uma nuvem de pó, que voava rápida para o lugar da peleja. Mais perto, aquele turbilhão rareou vomitando do seio basto esquadrão de árabes. Os mouros que fugiam deram volta e gritaram:

‒ A Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta!

Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, que estava com seu exército sobre Mertola e que viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar.



CAPÍTULO V

Cansados de largo combater, reduzidos a menos de metade em número e cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem, que estava ao pé das andas, que nova revolta era aquela.

— Os mouros foram socorridos por um grosso esquadrão — respondeu tristemente o pajem. — A Virgem Maria nos acuda, que os senhores cavaleiros parece recuarem já.

O Lidador cerrou os dentes com força e levou a mão à cinta. Buscava a sua boa toledana.

— Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha espada?

— Aqui a tenho, senhor. Mas estais tão quebrado de forças!... — Silêncio! A espada, e um bom ginete.

O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que andavam já sem dono. Quando voltou com ele, o Lidador, pálido e coberto de sangue, estava em pé e dizia, falando consigo:

— Por Santiago que não morrerei como vilão da beetria onde entrou cavalgada de mouros!

E o pajem ajudou-o a montar o cavalo.

Ei-lo o velho fronteiro de Beja! Semelhava um espectro erguido de pouco em campo de finados: debaixo de muitos panos que lhe envolviam o braço e o ombro esquerdo levava a própria morte; nos fios da espada, que a mão direita mal sustinha, levava, porventura, ainda a morte de muitos outros!


CAPÍTULO VI

Para onde mais travada e acesa andava a peleja se encaminhou o Lidador.

Os cristãos afrouxavam diante daquela multidão de infiéis, entre os quais mal se enxergavam as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos portugueses.

Dois cavaleiros, porém, com vulto feroz, os olhos turvados de cólera, e as armaduras crivadas de golpes, sustinham todo o peso da batalha.

Eram estes o Espadeiro e Mem Moniz. Quando o fronteiro assim os viu oferecidos a certa morte algumas lágrimas lhe caíram pelas faces e, esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre infiéis e cristãos e chegou aonde os dois, cada um com seu montante nas mãos, faziam larga praça no meio dos inimigos.

— Bem-vindo, Gonçalo Mendes! — disse Mem Moniz. — Quiseste assistir conosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feio, que estivesses fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado lá na saga, enquanto eu, velha dona, espreito os mouros com meu sobrinho junto desta lareira...

— Implacáveis sois vós outros, cavaleiros de Riba-Douro, — respondeu o Lidador em voz sumida- que não perdoais uma palavra sem malícia. Lembra-te, Mem Moniz, de que bem depressa estaremos todos diante do justo juiz.

‒ Velho sois; bem o mostrais! — acudiu o Espadeiro. — Não cureis de vãs porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que não ousam chegar-se a nós. Avante, e Santiago!

— Avante, e Santiago! — responderam Gonçalo Mendes e Mam Moniz: e os três cavaleiros deram rijamente nos mouros.


(Fonte: Universidade de Amazonia . NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal, CEP: 66060-902, Belém – Pará, www.nead.unama.br, e-mail: nead@unama.br)



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quarta-feira, 21 de julho de 2010

A morte de Gonçalo Mendes da Maia, «O Lidador» ‒ III


Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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CAPITULO III

Como longa fita de muitas cores, recamada de fios d'ouro e refletindo mil acidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía na veiga entre as searas pálidas que cobriam o campo.

Defronte deles, os trinta cavaleiros portugueses, com trezentos homens d'armas, pajens e escudeiros, cobertos dos seus escuros envoltórios e lanças em riste, esperavam o brado de acometer.

Quem visse aquele punhado de cristãos, diante da cópia d'infiéis que os esperavam, diria que, não com brios de cavaleiros, mas com fervor de mártires, se ofereciam a desesperado transe. Porém, não pensava assim Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a têmpera das espadas e lanças portugueses e a rijeza dos braços que as meneavam.

De um contra dez devia ser o iminente combate; mas, se havia aí algum coração que batesse descompassado, algumas faces descoradas, não era entre os companheiros do Lidador, que tal coração batia ou que tais faces descoravam.

Pouco a pouco, a planura que separava as duas hostes tinha-se embrido debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo se embebe a folha de papel saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lanças iam feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome de Alá soara em um só grito por toda a fileira mourisca.

Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras, balouçadas por violento terremoto, desabando, não fariam mais ruído, ao bater em pedaços uma contra a outra, do que este recontro de infiéis e cristãos. As lanças, topando em cheio nos escudos, tiravam deles um som profundo, que se misturava com o estalar das que voavam despedaçadas. Do primeiro encontro, muitos cavaleiros vieram ao chão: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as armas e traspassou o peito com o ferro de sua grossa lança. Deixando-a depois cair, o velho desembainhou a espada e gritou ao Lidador, que perto dele estava:

— Senhor Gonçalo Mendes, ali tendes, no peito daquele perro, aberto a seteira por onde eu, velha dona assentada à lareira, costumo vigiar a chegada de inimigos, para lhes ladrar, como alcatéia de vilãos, do cimo da torre de menagem.

O Lidador não lhe pôde responder. Quando Mem Moniz proferia as últimas palavras, ele topara em cheio com o terrível Almoleimar. As lanças dos dois contendores haviam-se feito pedaços, e o alfanje do mouro cruzou-lhe com a toledana do fronteiro de Beja.

Como duas torres de sete séculos, cujo cimento o tempo petrificou, os dois capitães inimigos estavam um defronte do outro, firmes em seus possantes cavalos: as faces pálidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado a imobilidade que dá, nos grandes perigos, o hábito de os afrontar: mas no rosto de Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um valor colérico e impetuoso. Cerrando os dentes com força, descarregou um golpe tremendo sobre o seu adversário: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje se embebeu inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e a couraça; mas a pancada falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo coxote do mouro, que já desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudação dos dois cavaleiros inimigos.

— Brando é o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado é o metal do meu arnês. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios deste alfanje.

Isto disse Almoleimar, dando uma risada, e a cimitarra bateu no fundo do vale penedo desconforme desprendido do píncaro da montanha.

O fronteiro vacilou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe pendentes: a espada ter-lhe-ia caído no chão, se não estivesse presa ao punho do cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rédeas frouxas, fugiu um bom pedaço pela campanha, a todo o galope.

Mas o Lidador tornou a si: uma forte sofreada avisou o ginete de que seu senhor não morrera. À rédea solta, lá volta o fronteiro de Beja; escorre-lhe o sangue, envolto em escuma, pelos cantos da boca: traz os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar!

Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo Mendes da Maia passou por entre os cristãos e mouros: os dois contendores viram-se, e, como o leão e o tigre, correram um para o outro. As espadas reluziam no ar; mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu à violenta estocada; e o dangue, saindo às golfadas, cortou a última maldição do agareno.

Mas a espada deste também não errara o golpe: vibrada na ânsia, colhera pelo ombro esquerdo o velho fronteiro e, rompendo a grossa malha do lorigão, penetrara na carne até o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue godo misturado com sangue árabe.

— Perro maldito! Sabe lá no inferno que a espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a sua cervilheira.

E, dizendo isto, o Lidador caiu amortecido; um dos seus homens de armas voou a socorrê-lo; mas o último golpe d'Almoleimar fôra o brado da sepultura para o fronteiro de Beja: os ossos do ombro do bom velho estavam como triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado envoltas nas malhas descosidas do lorigão.




(Fonte: Universidade de Amazonia . NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal, CEP: 66060-902, Belém – Pará, www.nead.unama.br, e-mail: nead@unama.br)



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